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Em calma contemplação permanecia Li-Fu-Tai senta á frente de sua cabana. O céu, profundamente azul, distendia-se acima deste, sem que lá dirigisse o olhar. Extensos e ondulantes arrozais cercavam-no. Li-Fu-Tai não lhes deva atenção. Recolhera-se completamente em si mesmo. Sua alma saudava almas de outras planícies. Um peque cão amarelo aproximara-se aos pulos, procurando captar a atenção do homem. Todo seu pular engraçado, seus latidos alegres, foram em vão. A alma do homem não se encontrava em seu corpo. O animal, com os pontiagudos dentinhos brancos, abocanhou a vestimenta azul de Li-Fu-Tai e sacudia-a. Quando este gesto também se mostrou inútil. O cãozinho voltou correndo à cabana. Desta saiu então uma mulher que foi na direção do Homem. Ao chegar perto dele, vendo-lhe a expressão ausente, ela silenciosamente ergue do chão as vasilhas de água e afastou-se, levando-as consigo. Tranqüilidade completa existia agora ao redor do sonhador. Á distância, como que navegando, uma branca nuvem de singular formato vinha se aproximando. Estava cada vez mais próxima e seus contornos, esboçando-se melhor, tomaram a figura de um gigantesco dragão. Logo que se acercou de Li-Fu-Tai, ela deu a impressão de querer pousar. Então, a cintilante cabeça da nuvem dragão ergueu-se, destacando-se do azul do céu, e uma voz troou igual ao bramido do vento, ora forte, ora branda:
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"Li-Fu-Tai, escuta! Sou um enviado de Schang-Ti e quero falar contigo. Regressa dos jardins das almas!"
O corpo do homem continuou imóvel, a alma, no entanto obedeceu ao chamado e ficou à espera do que o mensageiro de Shang-Ti tinha a lhe dizer. Este começou novamente:
"Alma humana escuta! Por amor a teu povo meditas dia e noite sobre um modo de destruir o poderio dos demônios. Mas, bem sabes que tua força é insuficiente. Tampouco estás prepara para acolher em ti os pensamentos do Céu e transmiti-los àqueles que, necessitados dos mesmos, os imploram a Shang-Ti. Sabe, no entanto: Nas alturas, em um dos jardins mais elevados, uma alma há tempos vem sendo preparada. Ela pode acolher em si a mais sublime sabedoria e recebeu. A capacidade de colher forças da Luz sempre que for necessário. Esta alma está destinada a ser o guia de teu povo e tu foste escolhido por Shang-Ti para lhe formares o lar terreno. Essa é a recompensa que recebes pela tua lealdade para com Shang-Ti e para com teu povo. Dize, Li-Fu-Tai queres hospedar essa alma e por ela zelar, como requer uma dádiva dos deuses?"
A alma de Li-Fu-Tai prostrou-se ao solo e, orando, tocou com a fronte por três vezes a mãe terra. Neste instante tinha plena consciência do que lhe ocorrera e uma profunda veneração apossou-se de seu ser. Entrementes, a nuvem dragão sumira. Em contínuo azul, o céu sorria para o homem assim agraciado. A esposa retornava da fonte. Ele foi ao seu encontro, tomou a si as vasilhas cheias e levou-as para dentro da cabana. Não cogitou nenhum momento em deixá-la partilhar do vivenciado. Haveria tempo de sobra para lhe contar, quando a alma sagrada estivesse encarnada. Havia já cinco anos que viviam juntos sem que os deuses agraciassem a união. Agora Li-Fu-Tai sabia a causa. Agora Li-Fu-Tai sabia a causa. Essa criança deveria crescer num ambiente tranqüilo, aparta dos demais. Li-Fu-Tai, porém, deveria começar a preparar-se, deveria diariamente aprofundar-se nas Escrituras Sagradas, que continham a doutrina dos deuses e em especial a de Shang-Ti, o mais elevado dos deuses. Precisava, cada vez mais conscientemente, enviar sua alma aos jardins da Luz; precisava familiarizar-se com aqueles paramos para poder tornar-se bom guia à alma que se aproximava. Também pelos bens terrenos deveria zelar melhor, para que nada fosse faltar ao anunciado. Wu-LI, sua mulher, nos meses subseqüentes, admirou-se, não poucas vezes, da atividade contínua do marido. Mas julgava-a acertada. Pressentia a nova missão que lhe cabia e plena de alegria preparava-se para a mesma. Medrosamente seguia todos os conselhos que as mulheres experientes lhe davam. Após pôr-do-sol não podia arriscar um passo fora da cabana, para que os demônios não pudessem acerca-se dela, assustando-a. Necessitava colher ervas de diferentes espécies e trazê-las sempre consigo, atraindo assim os bons espíritos.
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Pois a atmosfera inteira estava repleta de espíritos os mais diversos e nunca se podia cuidar o suficiente para não atrair malefícios para si ou para a criança. E como a pessoa devia cuidar-se em não sentir inveja ou ódio para que a alma anunciada não fosse talvez obrigada a encarnar-se no corpo de alguma anunciada não fosse talvez obrigada a encarnar-se no corpo de alguma raposa. Das vizinhas, cada qual sabia um conselho diferente. Wu-Li observava todos, cuidadosamente, até que um belo dia notou que muitos dos conselhos se contradiziam. A quem deveria seguir? Falar a respeito com o marido, nem lhe ocorreu. Ele, possivelmente, como a maioria dos homens, pensava que faltava inteligência às mulheres, de maneira que era impossível com ela dialogar seriamente. Ela não queria expor-se de antemão a uma recusa. Era estranho; através do vulto, Wu-Li, parecia avistar os troncos das palmeiras. Seria um mensageiro celeste? Um demônio não podia ser. Mas bem que haviam contado a Wu-Li que os demônios às vezes tomavam belas fôrmas; esta mulher, porém, faltava à alma de Wu-Li, que tranqüilamente entregou-se ao benfazejo sentimento que a aparição lhe despertava. Ao Raiar do dia, a vizinha mias próxima veio e pediu lume, já que o seu apagara-se durante a noite, Wu-Li assustou-se. Onde o fogo se extingue a vida familiar não vai bem. De qualquer maneira, não queria que visitante entrasse em sua casa. Pediu-lhe que esperasse no jardim. Era desse precisamente o desejo da vizinha. Ela percorreu as touceiras, observando as flores. Quando Wu-Li voltou da cabana com as brasas, a mulher não manifestou pressa de levá-las a seu próprio lar.
-Possui magníficas flores, Wu-Li a começou, bajulando. Possivelmente nenhuma mulher em toda a redondeza pode gabar-se de possuir tais maravilhas. Que fazes com as flores que cortas diariamente?
-Levo-as à cabana e alegro-me com elas, veio rápida a resposta.
Wu-Li ficou sem saber o que responder. A vizinha fez menção de colher uma haste com três belíssimas flores brancas, coniformes. Antes que ela pudesse efetuar o gesto, o cãozinho, que passara despercebido, avançou. Rosnou hostilmente para a vizinha, a quem, nesta conjuntura, pareceu grande e perigoso. Dando um grito, ,ela largou a haste e com as brasas quase consumidas foi embora. Wu-Li acariciou o animal, feliz por estar livre da curiosa. Mas tão cedo não encontraria sossego. Decorrido pouco tempo, outra mulher dos arredores apareceu e contou seu desejo de efetuar uma promessa no templo de Kwang-Non, muitas milhas distante. Era sua intenção ofertar frutas,, arroz e flores. Queria que Wu-Li lhe desse alguns dos belos cálices brancos. Exatamente aqueles que ela cultivava para o altar.
-Shang-Ti, implorou ela intimamente, mandaste solicitar tua ajuda quando dela necessitasse. Não permitias que levassem as flores a ti destinadas!
Mal terminada a prece, Wu-Li avistou a Medianeira Luminosa e desta repetiu então as palavras:
-Quem deseja levar oferenda à deusa, deve fazê-lo com flores cultivadas por suas próprias mãos. Que te adiantaria ofertar estes maravilhosos cones bracos? A deusa saberia que pro
-Quem deseja levar oferenda à deusa,, deve fazê-lo com flores cultivadas por suas próprias mãos. Que te adiantaria ofertar estes maravilhosos cones brancos? A deusa saberia que procedem do jardim de Wu-Li.
-Têm razão, não se devem ofertar flores alheias.
Com estas palavras a vizinha despediu-se. A Medianeira já havia desaparecido.
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Wu-Li apanhou as almejadas flores brancas e, orando, levou-as ao altar da casa. Ali se prostrou, agradecendo a Schang-Ti o auxílio. Depois sentou-se e pôs-se a fazer seu trabalho de agulha. Prometera a Kwang-Non um pano bordado para cobertura do turíbulo, em agradecimento pela dádiva que recebia naquela alma pura que lhe confiavam. Com cuidado e vagar e escolhia os fios e jeitosamente passa-os pelo tecido. Antess de seguir Li-Fu-Tai como esposa, Wu-Li usufruirá de educação esmerada. Junto aos templos dos principais deuses, habitavam senhoras inteligentes e prestimosas que dedicavam suas vidas à instrução e ao auxílio ao próximo. Assim, foi a criança entre às boas mulheres e cresceu sob os cuidados delas em meio a muitas outras meninas. O regime era severo, porém muito aprendiam. Algumas eram educadas para servir-nos diferentes templos das deusas, dos quais existiam inúmeros. Wu-Li tentou lembrar-se dos nomes todos, porém , sorrindo, desistiu. Mesmo outrora mal soubera o nome das deusas e o motivo de serem adoradas. Seria isso um erro? Severas repressões haviam recebido das boas mulheres, e muitas lágrimas haviam rolado por esse motivo. Não parecia, contudo, terem os deuses lhe guardado rancor, pois lhe davam a alma para cuidar. Como ela se alegrava pela criancinha!
Baixinho começou a dialogar com a alma infantil e parecia que o nascituro lhe dava resposta.
"Deves olvidar que venho dos jardim sagrados, tu que desejas ser minha mãe. Deves ensinar-me e orientar-me como se eu fosse uma criança comum. Do contrário, não poderei cumprir minha missão."
"Alma, qual missão te aguarda?"
"Devo combater os demônios e exterminá-los, preparando assim o caminho para que os Espíritos Luminosos possam chegar às almas humanas."
"Será então um guerreiro neste mundo?" perguntou ela com um leve suspiro.
"Não combaterei com as armas terrenas. Os maus espíritos devem ser vencidos espiritualmente."
"posso auxiliar-te, ó alma que te aproximas? Dize que posso fazer por ti?"
"cria ao meu redor paz e harmonia desde o meu primeiro suspiro e permanece na verdade como estás agora; assim ajudarás a preparar o solo no qual me desenvolverei. Ajudarás ainda a forjar as armas de que necessito para a luta."
"Alma, quem te envia?"
"Sou enviado de Um que está tanto mais acima de Schang-Ti, quanto este se encontra acima de vós, humanos. Podeis imaginar isto? Schang-Ti é somente um dos Seus servos. Ele é Sublime e Poderoso, Sábio e Justo."
Estremecendo de veneração, a mulher escutava-o. Quis dizer algo, mas a voz lhe faltou. Finalmente lhe foi possível perguntar:
"Como se chama Aquele, de quem falas?
Ela não recebeu resposta.
Durante bastante tempo ela permaneceu sentada, perdida em profundo meditar. Depois se dirigiu ao altar, mas na oração não procurou por Schang-Ti, e sim pelo Sublime que paira sobre tudo o mais. E algo completamente novo a per fluiu, um sentimento de bem-aventurança e de renovada força,, como nunca antes conhecera. A partir daquele dia, elevava suas preces somente ao Sublime; entretanto, não lhe era possível comunicar isso a Li-Fu-Tai. Um profundo acanhamento perante a santidade daquilo que a alma lhe comunicara selava-lhe os lábios.
Os dias passaram num ritmo sossegado até a hora em que a idosa vizinha colocou-lhe o recém nascido nos braços. Era um menino de compleição delicada e pele muito clara. A velha indicou estas particularidades ao sacerdote que viera abençoar o menino e este, por sua vez, interrogou Li-Fu-Tai a respeito. O orgulhoso pai que envidava os maiores esforços para parecer indiferente, não o conseguindo, porém de todo, tinha muito a contar.
-Repara em mim, digno pai dos templos,, disse ele. Também a tonalidade de minha pele é mais clara do que a dos meus vizinhos. A ação do tempo tornou a diferença menor, mas nos dias dos banhos sagrados torna-se esta bem visível. Isto advém de meus antepassados não terem sido desta região; eles emigraram para cá, cruzando altas montanhas.
Sabes de qual país vieram? Quis saber o sacerdote.
-Chamavam-no de Tarim e a lenda conta ser aquela terra completamente diversa desta aqui. Outras plantas lá cresciam e havia também outros animais.
-E qual a razão que levou teus ancestrais a abandonarem a tão peculiar país? indagou irônico o sacerdote.
Inclusive isso Li-Fu-Tai soube responder.
-De pai para filho transmitido a história do remoto acontecimento. O antepassado que emigrou em companhia dos filhos fez-lo a mando de um dos deuses.
O sacerdote interrompeu:
- Qual será o deus que lhe deu a ordem?
- Não sei, respondeu Li-Fu-Tai um pouco hesitante. O nome que nos foi transmitido não tem relação com nenhuma das nossas deidades, contudo eram ancestrais homens de fé.
-Qual era o nome? Insistiu o ouvinte.
-Soava como Jahwa, retrucou Li-Fu-Tai.
-Jahwa, Jahwa? Refletiu o sacerdote. Tem razão, ao corresponder ao nome de qualquer deus nosso conhecido. Provavelmente o nome ficou truncado na tradição oral. Deve ter sido assim! Relata adiante!
-A ordem recebida por meu antepassado Li-Pe-Yang foi mais ou menos a seguinte: "Dirige-te ao sul, por sobre as altas montanhas. Não receies qualquer perigo. De animais selvagens e de intransitáveis abismos estarás protegido, pois segues a vontade de Deus.
A voz comunicou-lhe que desta parte do reino do Meio deverá emanar um dia uma luz que iluminará todo o país, uma luz cujo esplendor colocará os demônios em fuga.
Após cruzares as montanhas, segue avante para o sul, mas altera um pouco o rumo para o nascente do sol. Chegarás a uma terra fértil onde os homens usam boinas pretas com botões vermelhos. Repara bem por ali. Uma grande epidemia tornou terras e propriedades despovoadas. Caso encontres algo que te agrade, vai ao sacerdote e solicita-lhe a posse. “Dize-lhe que eu te envio e ele fará conforme tua vontade.”
-Uma tradição bem estranha, falou o sacerdote, admirado. Suaves também qual a causa que inspirou teu antepassado a chegar a nossa terra?
-Também isso nos foi transmitido, asseverou o perguntado.
-E para que seus descendentes pudessem partilhar dessa luz,, o teu ancestral empreendeu a penosa viagem? Ponderou o sacerdote. Deveras, tal desprendimento mercê receber de vossa parte honras especiais. Vejo que erigistes um belo altar. Continuai com as oferendas, pois isso trará à criancinha as bênçãos dos ancestrais. Cheio de dignidade o sacerdote retirou-se. Na alma de Li-Fu-Tai, porém, surgira algo novo. Poderia presumir ser esta criança a escolhida para trazer a luz? Tudo assim indicava! Certamente era assim! A criança deveria então chamar-se Pe-Yang! E agora fora abençoada pelo sacerdote com o nome de Li-Erl. Parecera-lhes belo e adequado. Enfim, a criança teria de usá-lo agora, até que mais tarde seus atos justificassem uma mudança de nome.
Com infinita cautela, Li-Fu-Tai aproximou-se do leito da mulher, que felicíssima contemplava o pequeno Li-Erl. Era ele verdadeiramente uma criança encantadora. A mão suave de Wu-Li afastara os amuletos e as ervas com as quais as vizinhas havia literalmente coberto o recém-nascido, a protege-lô dos demônios e dos feitiços.
-Tu estás protegido, meus pequenos guerreiros do Sublime murmuraram seus lábios e a ela pareceu que a crianças sorria.
Editora ORDEM DO GRAAL NA TERRA