domingo, 14 de fevereiro de 2010

Herman Hesse


(Hermann Hesse)


Um novo romance de grande envergadura de Thomas Mann pode ser chamado de um acontecimento na nossa literatura. Surpresas ninguém espera dele, pois pouco de nossos autores contemporâneo surgiram como ele, já no primeiro livro quase como escritor feito que desde o início nos oferecesse sua imagem com todos os traços essenciais: a imagem de um ser humano nobre, sensato, especial um observador implacável que exercita refinada as artes de linguagem, e quase se envergonha dessa sua arte, de modo que é um melancólico e, como pessoa inteligente e defensiva, facilmente se torna irônico. Todos esses traços já estavam no pequeno senhor Friedemann, e todos se revelaram plena e harmoniosamente desenvolvidos, numa espantosa consonância, no Buddeenbrooks.

Alteza Real, o novo grande romance de Mann, realmente não traz nenhuma surpresa. Talvez provoque uma espécie de decepção àqueles que durante esses anos repetidos se ocuparam, feliz com os Buddeenbrooks, pois livros como os Buddenbrooks nem mesmo um mestre escreve todos os anos ou mesmo há dez anos. O Buddenborrooks executando suas singularidades e jogos foram uma obra daquelas que, no curso dos anos, se pode confundir com experiências própria, como algumas grandes obras de Balzac, Flaubert, Tolstoi, Bang. Seus personagens eram tão não-intencionais, não-inventados, tão naturais e convincentes, como um pedaço da natureza. Diante deles abandonava-se o ponto de vista estético e se entregava como à visão de um fenômeno natural. Comparado a ela, Alteza Real é um romance; romance no bom e no mau sentido, uma criação, um trabalho artístico algo intencionado, que seguimos com interesse, amor admiração, mas não com o mesmo arrebatamento.

Talvez isso se ligue ao fato de que apesar de nesse novo livro se poder observar também algumas singularidades perturbadoras, falta-lhe aquela força que nos arrebatou nos Buddenbrooks. Somos, então, juízes mais severos e mais frios e nos admiramos de que grande artista tenha um traço tão funesto, e que toda a sua segurança nem sempre possa salvá-lo de enganos óbvios e pecados contra o bom gosto. Soa quase engraçado: Thomas Mann e falta de gosto, mas é assim.

É que Thomas Mann tem a segurança do gosto, que repousa numa cultura, mas não a segurança intuitiva do gênio ingênuo. E, com isso, tudo está dito: ele é escritor, um escritor talentoso, talvez um grande escritor, mas é da mesma forma, e mais ainda, um intelectual. Tem o talento, mas não tem a ingenuidade de um Balzac ou mesmo de um Dickens. Dessa forma, ele sente seu grande talento antes como uma distinção que lhe causa orgulho. Por isso também, ele tende a ironizar e, eventualmente, a violar a forma artística.

Parece-me que o escritor ingênuo, "puro", nem pensa de forma alguma nos leitores. O mau autor pensa neles, procura agradar-lhes, adulá-los. O intelectual desconfiado, Thomas Mann, portanto procura manter o leitor a distância, ironizando-o indo aparentemente ao seu encontro, oferecendo facilidades e mesmos muletas. Para isso precisa-se recorrer ao costume perverso de apresentar cada personagem, quando, reaparece através de seus atributos estereotipados para que o leitor diga: Ah, esse aí é ele! Mann sabe tanto atrair quanto enganar seu leito, e chega ao ponto de jogar um jogo absolutamente infantil, com nomes e máscaras, do tipo daqueles mais antigos e piores jogos de salão. Ele apresenta um doutor Überbein com a pele rosto esverdeada e a barba vermelha, uma senhorita Unschlitt (filha de um fabricante de sabão!) de clavículas salientes e um senhor Schustermann com seus recortes de jornal, e muitas outras dessas personagens, que nada são senão máscaras. E quando se acaba de ler umas observações de Mann sobre a natureza, inacreditavelmente cheia de amor, ou uma de suas brilhantes frases sobre arte, sobre música, por exemplo, não se entende como esse mesmo homem pode malbaratar de tal maneira sua arte.

Tudo isto soa um tanto crítico e rabugento, mas é apenas porque amamos e respeitamos Thomas Mann que temos de observar e reconhecer essas peculiaridades. Na verdade, um escritor menor poderia nos impressionar com essas manhãzinhas e brincadeiras, que em Mann nos aborrecem. Parece-nos, contudo, que um artista como Mann, intelectualmente tão acima de todos os preconceitos e juízos, que sabe observar e criar com tamanha pureza deveria poder renunciar, em obras geradas e executadas com grande seriedade, a dirigir ao público estímulos desse tipo que são certamente engraçados e divertidos, e que certamente lhe dão uma secreta satisfação. Com isso, que naturalmente é intencional, ele consegue dar ao leitor comum uma espécie de superioridade, para em compensação roubar-lhe o que há de refinado, sério, realmente digno de ser passagem, que o leitor comum não o perceberá. Assim também sua linguagem é, na aparência, a de um bom jornalista, aparentemente ele não tenciona senão ser óbvio, preciso e secretamente é tão pleno de malícia, ironia, nobreza e oculto brilho, que ao lê-lo se experimentam constantemente refinados encantos e surpresas.

O burguês pode ler esses livros e, com efeito, entreter-se com eles (tanto mais porque nesse novo romance se desenrola uma fábula bastante romanesca), enquanto na verdade, os pontos importantes lhe escapam um a um. E nós, que temos o bom fato para esses pontos importantes, apenas os sabemos pela metade, quase de consciência pesada, porque com todo seu espírito e sua graça, apenas se ligam muito superficialmente com a arte. Gostaríamos de ler um dia um livro de Thomas Mann em que ele nem sequer pense nos leitores, em que não pretenda atrair ou ironizar ninguém. Jamais teremos esse livro, nosso desejo é injusto, pois esse jogo de gato e rato faz parte da natureza de Mann; mas pode ser que ele, que afinal parece desejar certa objetividade, se force a tornar um pouco mais objetiva essa técnica ainda demasiado subjetiva. Pois esse jogo constante com o leitor supõe o pensamento sempre voltado para ele, e isso não faz parte dos requisitos para que uma obra de arte pura tenha resultado.

Entrementes, porém, alegramo-nos com a Alteza real, e com tudo o que nos vem desse homem aristocrático. Suas coisas mais apagadas ainda estarão sempre muito acima do comum.

O primeiro livro de Thomas Mann, comentado por Hessse foi o volume de novelas "Tristão" publicado em 1903 pela S. Fischer, de Berlim; Hessse publicou seu comentário em 5.2.1903 no jornal "Neue Zücher Zeitung":

Quase se poderia crer que Thomas Mann tem a ambição dum artista de mil talentos. Nos Buddenbrooks ele foi o atleta que "trabalhou" a sangue-frio e com segurança o peso de toneladass de um material gigantesco. No Tristão, ele se já se apresenta como delicado malabarista, mestre do trivial. No fundo, é verdade os dois livros são tão proximamente aparentados quanto possível; apenas o que no Tristão aparece como jogo superficial, de mímica, nos Buddenbrooks se transforma em grandess gestos trágicos, pela violência e unidade do tema. Seu novo livro pode levar muita gente a considerá-lo unicamente o trabalho limpo de um artista muito sofisticado; parece até concatenar consigo mesmo, em sua graça fria. Ainda assim, ele é mais do que uma pequena obra-prima técnica. A seis novelas, das quais apenas uma, Luisinha, nos deixa-nos insatisfeitos o tempo todo, passam-se em geral na fronteira do burlesco, e lembram por vezes algumas antigas e loucas songs drolatiques*. Observando melhor, os monstros não são monstros, as caretas não são caretas, tudo é apenas efeito da iluminação apararentemente casual, altamente pensada e estudada; assim que colocamos o holofote em outra posição, reconhecemos naqueles fantasmas nossos amigos, irmãos, primos, vizinhos às vezes até um traço familiar de nós mesmos. Essa descoberta nos dá em a parte a sensação de um susto, em parte de alivio, e parte apaziguamento, em parte de decepção e, na verdade, já nos Buddenbrooks essa era a disposição de alma fundamental. Há dias em que contemplamos o mundo com um misto de crítica sóbria e nostalgia inconfessada; nesses dias, pessoas e coisas nos mostram rostos tais como os que Thomas Mann pinta, tão comicamente grave e tão melancolicamente irônico. Quem prepara uma mistura dessas, jamais é unicamente artista, mas deve ter bebido fundo de taça da insatisfação e da nostalgia, sem a qual nenhum artista se torna verdadeiro escritor. Assim, Tristão é um livro em que se encontram coisas muito diversas e que se pode saborear de maneiras muito diferentes, um livro exclusivamente para especialistas em literatura, para conhecedores; para esses, porém, constituirá umas das maiores especiarias que nos oferece o ano que finda.




* Talvez referência aos "contos droláticos" burlescos, do séc. XVI. (N. da T.)


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